Ex-colega de Cristiano, brasileiro é capitão da seleção inglesa de futsal
Reflexões

Podemos apostar que, no Brasil, poucos leitores conhecem o significado desta sigla: NKVD. Trata-se de uma antiga organização soviética, a  Narodnyj Komissariat Vnutrennikh Del, que significava Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Vamos, então, reviver um trágico momento de sandice do gênero humano.

Caminhando pelas cidades polonesas, em várias igrejas e catedrais reconstruídas após a Segunda Guerra Mundial, é possível admirar, em forma de pintura, escultura ou gravado em vitral, um ícone da Virgem Maria tão realista quanto comovente: a Madona, retratada em sofrimento, agarra o corpo de um homem que parece estar virado de costas, com uma marca de tiro na nuca. Para os poloneses, trata-se do ícone de Nossa Senhora de Katyn, o símbolo do martírio da nação durante a Segunda Guerra Mundial, que teve um de seus momentos-chave no massacre ordenado pelo regime soviético de Stalin contra oficiais poloneses, na primavera de 1940.

Os graduados poloneses feitos prisioneiros pelos russos, após a divisão da Polônia entre a Alemanha nazista e a União Soviética, foram massacrados junto com políticos, jornalistas, intelectuais, professores e industriais, assassinatos com execuções sumárias, a tiros, pelo NKVD, numa série de episódios que culminaram no massacre ocorrido perto da floresta de Katyn, localizada a cerca de 20 km da cidade russa de Smolensk. No total, mais de 25.000 pessoas foram mortas numa série de operações que se destacam por sua brutalidade e planejamento, por parte das autoridades soviéticas, ansiosas por apagar todos os vestígios de uma identidade polonesa da face da terra. Aniquilar, conscientemente, a nação, depois de eliminar o estado. Uma ação intencional e deliberadamente destinada à aniquilação dos contemporâneos e futuros líderes do povo polonês, para consolidar sua escravidão. Onde a Segunda Guerra Mundial representou para a Alemanha de Adolf Hitler o ponto de partida de uma campanha de escravidão de cidadãos poloneses e o extermínio gradual de sua comunidade judaica, foi, para Stalin e seu regime, o ponto de chegada de uma perseguição antipolonesa paranoica, que já teve suas primeiras expressões na época do Holodomor, a grande fome ucraniana dos anos 30, e no Grande Terror de 1937-1938.

Em 5 de março de 1940, Lavrentij Beria, chefe da polícia secreta soviética, propôs ao Politburo, o comitê executivo do Partido Comunista da União Soviética, formado por Kliment Vorochilov, Anastase Mikoyan, Viatcheslav Molotov, Lazare Kaganovitch et Mikhaïl Kalinine, a aprovação de uma ordem para eliminar as forças antissoviéticas e ativistas “nacionalistas e contrarrevolucionárias”, detidas em campos de concentração e prisões, nas partes ocupadas da Polônia. A desculpa foi uma  inexistente Organização Militar Polonesa, à qual foram acusados de pertencer alguns oficiais, que foram fuzilados.

Detidos nos campos de prisioneiros de Kalinin, perto de Moscou, em Staroblisk, perto da atual Donetsk, e especialmente no centro de Kozelsk, os poloneses, presos ou feitos prisioneiros, foram condenados à morte por uma ordem administrativa, caracterizada pelo tradicional cinzento discurso burocrático, com o qual a vida e as mortes foram decididas na URSS stalinista. Kozelsk é a cidade onde Fedor Dostoievsky colocou uma cena crucial dos irmãos Karamazov. Uma obra que combina fé trágica, discussões sobre o destino do ser humano e um duelo trágico entre diferentes morais, que viu uma parte dela ambientada na Ermida Optyn, da pequena cidade russa, que, desde 1939, se tornou o local de um campo de prisioneiros soviético e, ao mesmo tempo, base da fábrica da morte soviética. Como recordou a historiadora Anna Cienciala, emigrante polonesa nos Estados Unidos, os massacres que levaram o nome de Katyn aconteceram espalhados por várias áreas concentradas no espaço arborizado, próximo a Smolensk e seguiram um modus operandi friamente determinado: os presos levados de Kozelsk para Katyn eram “conduzidos em uma sala onde seus dados eram verificados. Dali chegavam a outra sala, escura e sem janelas” e, como relembram testemunhas do NKVD, “houve um estrondo agudo e foi o fim”. Em alguns casos, em Katyn, os prisioneiros foram levados diretamente para os túmulos com as mãos amarradas nas costas e mortos com um tiro na nuca.

Qual é o significado trágico mais expressivo do massacre de Katyn? Essencialmente o fato de nos convidar a pensar sobre o drama e a convergência dos regimes totalitários do século XX. Por muito tempo sua responsabilidade foi atribuída aos alemães, devido ao fato de que, Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich, querer explorar o massacre propagandisticamente, após a descoberta das valas comuns de Katyn, pelos militares alemães em 1943. A desinformação foi também cúmplice no Ocidente, antes do fim da Segunda Guerra Mundial: a ruptura entre o governo polonês, no exílio, e Stalin, após a descoberta do massacre, arriscava minar a coalizão antialemã. Como o jornal italiano Avvenire aponta, “o paradoxo macabro do julgamento de Nuremberg foi que, entre os juízes dos criminosos de Hitler, havia oficiais soviéticos, culpados de um assassinato em massa, semelhante, precisamente o massacre de Katyn”.

Em sua última entrevista, publicada no Osservatore Romano, poucos dias após sua morte, por ocasião do vigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 2009, Viktor Zaslavsky, professor de Sociologia Política da Universidade Luiss, em Roma, um grande estudioso das relações entre a Itália e o Bloco de Leste, na Guerra Fria e, sobretudo, um ex-cidadão soviético que, em 1974, foi expulso da URSS, declarou que “no contexto do debate sobre totalitarismos e sistemas totalitários do século XX, o massacre de Katyn representa um caso emblemático de limpeza de classe, enquanto Auschwitz se configura como um caso de limpeza étnica. Duas políticas gêmeas que unem o totalitarismo nazista e soviético”, com uma nação mártir por excelência: a Polônia, apelada “Cristo da Europa”, atormentada, durante décadas, até à emancipação definitiva, de qualquer dominação externa, a partir de 1989. Um ano que, finalmente, permitiu se fizesse justiça a um dos crimes mais odiosos e menos conhecidos do século XX. Um massacre com o qual um regime totalitário pretendia decapitar, repentinamente, uma nação inteira, eliminando suas perspectivas de renascimento e dizimando sua elite. Na mesma entrevista, o professor relembrou um fato marcante ocorrido durante um programa de televisão. “Recentemente, em uma transmissão de televisão, um apresentador perguntou a um grupo de jovens se eles sabiam sobre a tragédia do campo de concentração de Auschwitz e todos sabiam como responder. Depois disso, quando o mesmo apresentador perguntou aos espectadores se conheciam Katyn, nenhum deles sabia do que estava falando. Ninguém sabia da morte de milhares de cidadãos poloneses, incluindo militares e civis, na primavera de 1940, assassinados, friemente, pelas tropas soviéticas que invadiram a Polônia em setembro de 1939. Uma invasão, convém lembrar, precedida, em 23 de agosto de 1939, pelo pacto Molotov-Ribbentropp, isso é, pela aliança entre a União Soviética e a Alemanha nazista.”

(Edoardo Pacelli, ITALIAMIGA)